O caso Barreto

— Sr. Barreto, não falte amanhã, disse o chefe de seção; olhe que temos de dar essas cópia ao ministro.

— Não falto, venho cedo.

— Mas, se vai ao baile, acorda tarde.

— Não, senhor, acordo cedo.

— Promete?

— Acordo cedo, deixe estar, a cópia fica pronta. Até amanhã.

Qualquer pessoa, menos advertida, afirma logo que o amanuense Barreto acordou tarde no dia seguinte, e engana-se. Mal tinham batido as seis horas, abriu os olhos e não os fechou mais. Costumava acordar às oito e meia ou nove horas, sempre que se recolhia às dez ou onze da noite; mas, andando em teatros, bailes, ceias e expedições noturnas, acordava geralmente às onze horas da manhã. Em tais casos, almoçava e ia passar o resto do dia na charutaria do Brás, Rua dos Ourives. A reputação de vadio, preguiçoso, relaxado, foi o primeiro fruto desse método de vida; o segundo foi não andar para diante. Havia já oito anos que era amanuense; alguns chamavam-lhe o marca-passo. Acrescente-se que, além de falhar muitas vezes, saía cedo da repartição ou com licença ou sem ela, às escondidas. Como é que lhe davam trabalhos e trabalhos longos? Porque tinha bonita letra e era expedito; era também inteligente e de compreensão fácil. O pai podia tê-lo feito bacharel e deputado; mas era tão estróina o rapaz, e de tal modo fugia a quaisquer estudos sérios, que um dia acordou amanuense. Não pôde dar crédito aos olhos; foi preciso que o pai confirmasse a notícia.

— Entras de amanuense, porque houve reforma na Secretaria, com aumento de pessoal. Se houvesse concurso, é provável que fugisses. Agora a carreira depende de ti. Sabes que perdi o que possuía; tua mãe está por pouco, eu não vou longe, os outros parentes conservam a posição que tinham, mas não creio que estejam dispostos a sustentar malandros. Agüenta-te.

Morreu a mãe, morreu o pai, o Barreto ficou só; ainda assim achou uma tia que lhe dava dinheiro e jantar. Mas as tias também morrem; a dele desapareceu deste mundo dez meses antes daquela cópia que o chefe de seção lhe confiou, e que ele ficou de concluir no dia seguinte, cedo.

Cedo acordou, e não foi pequena façanha, porque o baile acabou às duas horas, e ele chegou à casa perto das três. Era um baile nupcial; casara-se um companheiro de colégio, que era agora advogado principiante, mas ativo e de futuro. A noiva era rica, neta de um inglês, que meteu em casa cabeças louras e suíças ruivas; a maioria, porém, compunha-se de brasileiros e de alta classe, senadores, conselheiros, capitalistas, titulares, fardas, veneras, ricas jóias, belas espáduas, caudas, sedas, e cheiros que entonteciam. Barreto valsou como um pião, fartou os olhos em todas aquelas coisas formosas e opulentas, e principalmente a noiva, que estava linda como as mais lindas. Ajuntai a isso os vinhos da noite, e dizei se não era caso de despertar ao meio-dia.

A preocupação da cópia podia explicar esse madrugar do amanuense. É certo, porém, que a excitação dos nervos, o tumulto das sensações da noite, foi a causa originária da interrupção do sono. Sim, ele não acordou, propriamente falando; interrompeu o sono, e nunca mais pôde reatá-lo. Perdendo a esperança, consultou o relógio, faltavam vinte minutos para as sete. Lembrou-se da cópia. — É verdade, tenho de acabar a cópia...

E assim deitado, pôs os olhos na parede, fincou ali os pés do espírito, se me permitem a expressão, e deu um salto no baile. Todas as figuras, danças, contradanças, falas, risos, olhos e o resto, obedeceram à evocação do jovem Barreto. Tal foi a reprodução da noite, que ele chegou a ouvir a mesma música às vezes, e o rumor dos passos. Reviveu as gratas horas tão velozmente passadas, tão próximas e já tão remotas.

Mas, se esse rapaz ia a outros bailes, divertia-se, e, pela própria roda em que nascera, costumava ter daquelas festas, que razão havia para a excitação particular em que ora o vemos? Havia uma longa cauda de seda, com um bonito penteado por cima, duas pérolas sobre a testa, e dois olhos embaixo da testa. Beleza não era; mas tinha graça e elegância de sobra. Perdei a idéia de paixão, se a tendes; pegai na de um simples encontro de salão, um desses que deixam algum sulco, por dias, às vezes por horas, e se desvanecem sem grandes saudades. Barreto dançou com ela, disse-lhe algumas palavras, ouviu outras, e trocou meia dúzia de olhares mais ou menos longos.

Entretanto, não era ela a única pessoa que se destacava no quadro; vinham outras, começando pela noiva, cuja influência no espírito do amanuense foi profunda, porque lhe deu a idéia de casar.

— Se eu me casasse? perguntou ele com os olhos na parede.

Tinha vinte e oito anos, era tempo. O quadro era fascinador; aquele salão, com tantas ilustrações, aquela pompa, aquela vida, as alegrias da família, dos amigos, a satisfação dos simples convidados, e os elogios ouvidos a cada momento, às portas, nas salas: — “Magnífica festa!” — “A noiva é linda!” — “Casamento feliz!” — “Que me diz a este baile?” — “Oh! esplêndido!” — Todas essas vistas, pessoas e palavras eram de animar o nosso amanuense, cuja imaginação batia as asas pelo estreito âmbito da alcova, isto é, pelo universo.

De barriga para o ar, as pernas dobradas, e os bracos cruzados sobre a cabeça, Barreto formulava pela primeira vez, um programa de vida, olhava para as coisas com seriedade, e chamava a postos as forças todas que pudesse ter em si para lutar e vencer. Oscilava entre a recordação e o raciocínio. Ora via as galas da véspera, ora dava nos meios de as possuir também. A felicidade não era um fruto que fosse preciso ir buscar à lua, pensava ele; e a imaginação provava que o raciocínio era verdadeiro, mostrando-lhe o noivo da véspera e na cara deste a sua própria.

— Sim, dizia Barreto consigo, basta um pouco de boa vontade, e eu posso ter muita. Há de ser aquela. Parece que o pai é rico; ao menos terá alguma coisa para os primeiros tempos. O resto é comigo. Um mulherão! O nome é que não é grande coisa: Ermelinda. O nome da noiva é que é realmente delicioso: Cecília! Manganão! Ah! manganão! Achou noiva para o seu pé...

“Noiva para o seu pé!” fê-lo rir e mudar de posição. Voltou-se para o lado, e olhou para os sapatos, a certa distância da cama. Lembrou-se que podiam ter sido roídos das baratas, esticou o pescoço, viu o verniz intacto, e ficou tranqüilo. Mirou os sapatos com amor; não só eram bonitos, bem feitos, mas ainda acusavam um pé pequeno, coisa que lhe enchia a alma. Tinha horror aos pés grandes — pés de carroceiro, dizia, pés do diabo. Chegou a tirar um dos seus, de baixo do lençol, e contemplá-lo por alguns segundos. Depois encolheu-o novamente, coçou-o com a unha de um dos dedos do outro pé, gesto que lhe trouxe à memória o adágio popular — uma mão lava a outra —, e naturalmente sorriu. Um pé coça outro, pensou. E, sem advertir que uma idéia traz outra, pensou também nos pés das cadeiras e nos pés dos versos. Que eram pés de verso? Dizia-se verso de pé quebrado. Pé de flor, pé de couve, pé de altar, pé de vento, pé de cantiga. Pé de cantiga seria o mesmo que pé de verso? A memória neste ponto cantarolou uma copla ouvida em não sei que opereta, copla realmente picante e música mui graciosa.

— Tem muita graça a Geni! disse ele, concertando o lençol nos ombros.

A cantora fez-lhe lembrar um sujeito grisalho que a ouvia uma noite, com tais derretimentos de olhos que fez rir alguns rapazes. Barreto riu também, e mais que os outros, e o sujeito grisalho avançou para ele, furioso, e agarrou-o pela gola. Ia dar-lhe um murro; mas o nosso Barreto deu-lhe dois, com tal ímpeto que o obrigou a recuar três passos. Gente no meio, gritos, curiosos, polícia, apito, e foram ter ao corpo da guarda. Aí soube-se que o sujeito grisalho não avançara para o moço com o fim de se despicar do riso, por imaginar que se risse dele, mas por supor que estava mofando da cantora.

— Eu, senhor?

— Sim, senhor.

— Mas se até a aprecio muito! Para mim é a melhor que temos atualmente nos nossos teatros.

O sujeito grisalho acabou convencido da veracidade de Barreto, e a polícia mandou-os em paz.

— Um homem casado! pensava agora o rapaz, recordando o episódio. Eu, quando casar, hei de ser coisa muito diferente.

Tornou a pensar na cauda e nas pérolas do baile.

— Realmente, um bom casamento. Não conhecia outra mais elegante... Mais bonita havia no baile; uma das Amarais, por exemplo, a Julinha, com os seus grandes olhos verdes — uns olhos que faziam lembrar os versos de Gonçalves Dias... Como eram mesmo? Uns olhos cor de esperança...*

Que, ai, nem sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Não se lembrando do princípio da estrofe, teimou por achá-lo, e acabou vencendo. Repetiu a estrofe, uma, duas, três vezes, até decorá-la inteiramente, para não esquecê-la mais. Bonitos versos! Ah! era um grande poeta! Tinha composições que haviam de ficar perpétuas na nossa língua, como o Ainda uma vez, adeus! E Barreto, em voz alta, recitou este começo:

Enfim te vejo! Enfim, posso,
Curvado a teus pés, dizer-te
Que não cessei de querer-te
Pesar de quanto sofri!
Muito penei! Cruas ânsias,
De teus olhos apartado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti.

— Realmente, é bonito! exclamou outra vez de barriga para o ar. E aquela outra estrofe — como é? —, aquela que acaba:

Quis viver mais, e vivi!

Desta vez, trabalho em vão; a memória não lhe acudiu com os versos do poeta; em compensação, trouxe-lhe uns do próprio Barreto, versos que ele sinceramente rejeitou do espírito, vexado da comparação. Para consolar o amor-próprio, disse que era tempo de tratar de negócios sérios. Versos de criança. Toda a criança faz versos. Vinte e oito anos; era tempo de seriedade. E o casamento voltou, como um parafuso, a penetrar no coração e na vontade do nosso rapaz. A Julinha Amaral não era grande negócio, e demais já andava meio presa ao filho do conselheiro Ramos, que advogava com o pai, e diziam que ia longe. Todas as filhas do barão de Meireles eram bonitas, menos a mais moça, que tinha cara de pau. Verdade é que dançava como um anjo.

— Mas a Ermelinda... Sim, a Ermelinda não é tão bonita, mas também não se pode dizer que seja feia; tem só os olhos miudinhos demais e o nariz curto, mas é simpática. A voz é deliciosa. E tem graça, o ladrão, quando fala. Ainda ontem...

Barreto recordou, salvo algumas palavras, um diálogo que tivera com ela, no fim da segunda valsa. Passeavam: ele, não sabendo bem que dissesse, falou do calor.

— Calor? disse ela admirada.

— Não digo que esteja quente, mas a valsa agitou-me um pouco.

— Justamente, acudiu a moça; em mim produziu efeito contrário; estou com frio.

— Então, constipou-se.

— Não, é costume antigo. Sempre que valso, tenho frio. Mamãe acha que eu vim ao mundo para contrariar todas as idéias. O senhor espanta-se?

— Seguramente. Pois a agitação da valsa...

— Aqui temos um assunto, interrompeu Ermelinda; era o único modo de tirar alguma coisa do calor. Se concordássemos, estava esgotada a matéria. Assim, não; teimo em dizer que valsar faz frio.

— Não é má idéia. Então, se eu lhe disser que valsa muito mal...

— Eu acredito o contrário, e provo... concluiu ela, estendendo-lhe a mão.

Barreto cingiu-a ao turbilhão da valsa. De fato, a moça valsava bem; o que mais impressionou o nosso amanuense, além da elegância, foi o desembaraço e a graça da conversação. As outras moças não são assim, disse ele consigo, depois que a conduziu a uma cadeira. E ainda agora repetia a mesma coisa. Realmente, era espirituosa. Não podia achar melhor noiva — de momento, ao menos; o pai era bom homem; não o recusaria por ser amanuense. A questão era aproximar-se dela, ir à casa, freqüentá-la; parece que eles tinham assinatura no Teatro Lírico. Vagamente lembrava-se de lhe haver ouvido isso, na véspera; e pode ser até que com intenção. Foi, foi intencional. Os olhares que ela lhe lançou traziam muita vida. Ermelinda! Bem pensado, o nome não era feio. Ermelinda! Ermelinda! Não podia ser feio um nome que acabava pela palavra linda. Ermelinda! Barreto deu por si a dizer alto:

— Ermelinda!

Assustou-se, riu-se, repetiu:

— Ermelinda! Ermelinda!

A idéia de casar fincou-se-lhe de vez no cérebro. De envolta com ela vinha a de figurar na sociedade por seus próprios méritos. Era preciso deixar a crisálida de amanuense, abrir as asas de chefe. Que é que lhe faltava? Tinha inteligência, prática, era limpo, não nascera das ervas. Bastava energia e disposição. Pois ia tê-las. Ah! porque não obedecera aos desejos do pai, formando-se, entrando na Câmara dos Deputados? Talvez fosse agora ministro. Não era de admirar a idade, vinte e oito anos; não seria o primeiro. Podia muito bem ser ministro, ordenanças atrás. E o Barreto lembrava-se da entrada do ministro na Secretaria, e imaginava-se a si mesmo naquela situação, com farda, chapéu, bordados... Logo depois, compreendia que estava longe, agora não — não podia ser. Mas era tempo de ganhar posição. Quando fosse chefe, casado em boa família, com uma das primeiras elegantes do Rio de Janeiro, e um bom dote — acharia compensação aos erros passados...

— Tenho de acabar a cópia, pensou Barreto repentinamente.

E achou que o melhor modo de crescer era trabalhar. Pegou no relógio que ficara sobre a mesa, ao pé da cabeceira da cama: estava parado. Mas não andava quando acordou? Pôs-lhe o ouvido, agitou, estava parado de vez. Deu-lhe corda, ele andou um pouco, mas parou logo.

— É uma espiga do tal relojoeiro das dúzias, murmurou o Barreto.

Sentou-se na cama um tanto reclinado, e cruzou as mãos sobre o estômago. Notou que não tinha fome, mas também comera bem no baile. Ah! os bailes que ele havia de dar, com ceia, mas que ceias! Aqui lembrou-se que ia pôr água na boca aos companheiros da Secretaria, contando-lhes a festa e as suas fortunas; mas não as contaria com ar de pessoa que nunca viu luxo. Falaria naturalmente, aos pedaços, quase sem interesse. E compôs alguns trechos de notícias, ensaiou de memória as atitudes, os movimentos. Talvez algum o achasse com olheiras. — “Foi pândega, não?” — Não, responderia ele, fui ao baile . — “Ah! você foi sempre ao baile? Que tal esteve?” — “O baile? diria com fastio; esteve magnífico”. E continuou assim o provável diálogo, compondo, emendando, riscando palavras, mas de maneira que acabasse contando tudo sem parecer que dizia nada. Diria o nome de Ermelinda ou não? Este problema gastou-lhe mais de dez minutos; concluiu que, se lho perguntassem, não havia mal em dizê-lo, mas não lho perguntando, que interesse havia nisso? Evidentemente nenhum.

Ficou ainda outros dez minutos, pensando à toa, até que deu um salto, e pôs as pernas fora da cama.

— Meu Deus! Há de ser tarde.

Calçou as chinelas e tratou de ir às abluções; mas logo aos primeiros passos, sentiu que as danças o tinham fatigado deveras. A primeira idéia foi descansar: tinha para isso uma excelente poltrona, ao pé do lavatório; achou, porém, que o descanso podia levar longe e não queria chegar tarde à Secretaria. Iria até mais cedo; às dez e meia, no máximo, estaria lá. Banhou-se, ensaboou-se, deu-se todo aos cuidados pessoais, gastando o tempo do costume, e mirando-se ao espelho, vinte e trinta vezes. Também era costume. Gostava de ver-se bem, não só para retificar uma coisa ou outra, mas para contemplar a própria figura. Afinal começou a vestir-se, e não foi pequeno trabalho, porque era meticuloso em escolher meias. Mal tirava umas, preferia outras; e já estas lhe não serviam, ia a outras, tornava às primeiras, comparava-as, deixava-as, trocava-as; afinal, escolheu um par cor de canela, e calçou-as; continuou a vestir-se. Tirou camisa, meteu-lhe os botões e enfiou-a; fechou bem o colarinho e o peito, e só então foi à escolha das gravatas, tarefa mais demorada que a das meias. Costumava fazê-lo antes, mas desta vez estivera pensando no discurso que dispararia ao diretor, quando este lhe dissesse:

— Ora viva! Muito bem! Hoje madrugou! Vamos à cópia.

A resposta seria esta:

— Agradeço os cumprimentos; mas pode o sr. diretor estar certo que eu, comprometendo-me a uma coisa, faço-a, ainda que o céu venha abaixo.

Naturalmente, não gostou do final, porque torceu o nariz, e emendou:

— ...comprometendo-me a uma coisa, hei de cumprí-la fielmente.

Isto é que o distraiu, a ponto de vestir a camisa sem ter escolhido a gravata. Foi às gravatas e escolheu uma, depois de pegar, deixar, tornar a pegar e a deixar umas dez ou onze. Adotou uma de seda, cor das meias, e deu o laço. Reviu-se então longamente no espelho, e foi às botas, que eram de verniz e novas. Já lhes tinha passado um pano; era só calçá-las. Antes de as calçar, viu no chão, atirada por baixo da porta, a Gazeta de Notícias. Era uso do criado da casa. Levantou a Gazeta e ia pô-la na mesa, ao pé do chapéu, para lê-la ao almoço, como de costume, quando deu com uma notícia do baile. Ficou pasmado! Mas como é que podia a folha de manhã noticiar um baile, que acabou tão tarde? A notícia era curta, e podia ter sido escrita antes de terminar a festa, à uma hora da noite. Viu que era entusiástica, e reconheceu que o autor havia estado presente. Gostou dos adjetivos, do respeito ao dono da casa, e advertiu que entre as pessoas citadas figurava o pai de Ermelinda.. Insensivelmente sentara-se na poltrona, e indo dobrar a folha, deu com estas palavras em letras grandes: “Horrível! Sete mortes!” A narração era longa, entrelinhada; começou a ver o que seria, e, em verdade, achou que era gravíssimo. Um homem da Rua das Flores matara a mulher, três filhos, um padeiro e dois policiais, e ferira a mais três pessoas. Correndo pela rua fora, ameaçava a toda a gente, e toda a gente fugia, até que dois mais animosos puseram-se-lhe em frente, um com um pau, que lhe quebrou a cabeça. Escorrendo sangue, o assassino ainda corria na direção da Rua do Conde; aí foi preso por uma patrulha, depois de luta renhida. A descrição da notícia era viva, bem feita; Barreto leu-a duas vezes; depois leu a parte relativa à autópsia, um pouco por alto; mas demorou-se no depoimento das testemunhas. Todas eram acordes em que o assassino nunca dera motivo de queixa a ninguém. Tinha 38 anos, era natural de Mangaratiba e empregado no Arsenal de Marinha. Parece que houve uma discussão com a mulher, e duas testemunhas disseram ter ouvido ao assassino: “Esse tratante não há de voltar aqui!” Outras não acreditavam que as mortes tivessem tal origem, porque a mulher do assassino era boa pessoa, muito trabalhadeira e séria; inclinaram-se a um acesso de loucura. Concluía a noticia dizendo que o assassino estivera agitado e fora de si; à ultima hora ficara prostrado, chorando, e chorando pela mulher e pelos filhos.

— Que coisa horrível! exclamou Barreto. Quem se livra de uma destas?

Com a folha nos joelhos, fitou os olhos no chão, reconstruindo a cena pelas simples indicações do noticiarista. Depois, tornou à folha, leu outras coisas, o artigo de fundo, os telegramas, um artigo humorístico, cinco ou seis prisões, os espetáculos da antevéspera, até que se levantou de repente lembrando-se que estava perdendo tempo. Acabou de vestir-se, escovou o chapéu com toda a paciência e cuidado, pô-lo na cabeça diante do espelho, e saiu. No fim do corredor, reparou que levava a Gazeta, para lê-la ao almoço, mas já estava lida. Voltou, deitou a folha por baixo da porta do quarto e saiu à rua.

Dirigiu-se para o hotel em que costumava almoçar, e não era longe. Ia apressado para desforrar o tempo perdido; mas não tardou que a natureza vencesse, e o passo tornou ao de todos os dias. Talvez a causa fosse a bela Ermelinda, porque, havendo pensado ainda uma vez no noivo, a moça veio logo, e a idéia do casamento meteu-se-lhe no cérebro. Não teve outra até chegar ao hotel.

— Almoço, almoço, depressa! disse ele sentando-se à mesa.

— Que há de ser?

— Faça-me depressa um filé e uns ovos.

— O costume.

— Não, não quero batatas hoje. Traga petit-pois... Ou batatas mesmo, venha batatas, mas batatas miudinhas. Onde está o Jornal do Commercio?

O criado trouxe-lhe o Jornal, que ele começou a ler, enquanto lhe faziam o almoço. Correu à notícia do assassinato. Quando lhe trouxeram o filé, perguntou que horas eram.

— Faltam dez minutos para o meio-dia, respondeu o criado.

— Não me diga isso! exclamou o Barreto espantado.

Quis comer às carreiras, ainda contra o costume; despachou efetivamente o almoço o mais depressa que pôde, reconhecendo sempre que era tarde. Não importa; prometera acabar a cópia, iria acabá-la. Podia inventar uma desculpa, um acidente, qual seria? Doença, era natural de mais, natural e gasto; estava farto de dores de cabeça, febres, embaraços gástricos. Insônia, também não queria. Um parente enfermo, noite velada? Lembrou-se que já uma vez explicara uma ausência por esse modo.

Era meia hora depois do meio-dia, quando bebeu o ultimo gole de chá. Ergueu-se e saiu. Na rua parou. A que horas chegaria? Tarde para acabar a cópia, para que ir à Secretaria tão tarde? O diabo fora o tal assassinato, três colunas de leitura. Maldito bruto! Matar a mulher e os filhos. Aquilo foi bebedeira, de certo. Assim reflexionando, ia o Barreto, caminhando para a Rua dos Ourives, sem plano, levado pelas pernas, e entrou na charutaria do Brás. Já lá achou dois amigos.

— Então, que há de novo? perguntou ele, sentando-se. Tem passado muito rabo de saia?